Estou a pensar que significa voltar a ver-te.
Sempre te encontro quando chove e o fumo docafé se parece a um génio. Apetece-me chorar enão sei porque o faço. São-me indiferentes asgotas de limão que usas ou o golpe que fazesnas veias para que me comova da tua solidão.Agora eu finjo, todas as formas de teatro meforam úteis para ficar nas ruas, onde me vendia.A minha família desejava que a minha vida fossetão imaculada como um cú virgem. Estou a pensarque tu não podias ficar, a mentira faz mexer os pés.Os livros mentem, as obras de arte também e eu,levanto o tampo da sanita e cago esta presunçãode festas com champanhe e os prémios dos escritoresimportantes.Estou a pensar que todos os dias vejo Deuse eu pergunto-lhe como se lhe perguntasseas horas, se ele gosta das putas, se ele amaas putas acima de todas as coisas. Estou aquiembrulhada em histórias fingidas, pensei consultarum psicólogo, eu Maria, natural de Bragança, violênciano corpo e na memória, não tenho filhos, não tenhohomem e aqui estou a contar esta minha odisseia a quedei o nome: mulher com sémen nos olhos.Acabei de chegar á capital, na terra de ondevenho o trabalho é pouco e o senhor Januárioprometeu-me um lugar de corista no teatro; para ele,eu era um talento de corpinho feito, ele dava aresde muitos conhecimentos, conhecia ministros jogadoresde futebol e, passado quase um ano, divido um velhoquarto com um travesti, a Rosário que é sero positivae dá á força toda no cavalo.Atirada á rua ganho a vida a fazer broches dentro deferraris e outros carros de marca, ás terças feirascanto o fado vadio numa taberna, o senhor Januário, ochulo, dizia que eu havia de ser o orgulho de minha mãe.Na taberna onde canto o tal de fado vadio conheci umpoetas que quer escrever para mim, ele é um velho doce.Eu não sei o que ele escreve, mas se o que ele escrevefor o sorriso dele vou gostar do que escreve. Na estantedo meu quarto tenho alguns livros. Só não gosto de livroscatólicos, as igrejas só servem para dormir; quando olhoa virgem que tem o meu nome e vejo as pessoas a darem-lhemoedas, digo-lhe que na rua ganhava mais e que o pecado éuma treta, basta fechar os olhos e tudo seconverte em virtude.Pego na mala e apanho um táxi, estou no ano de 89,da janela do táxi vejo uma carrinha da policia computas lá dentro. Muitas vezes me encontrei na mesmasituação, sentia-me uma vaca dentro de uma camioneta;sinto os pés doridos, peço para parar uns minutosnuma farmácia, o empregado parece um alfaiate atirar-me as medidas.- Que quer Tenho os pés doridos.- Aqui tem.- Quanto é 250 escudos.Depois volto para o táxi e, passados uns minutos estouem casa. O prédio é velho e cheira a mijo de rato.A entrada não tem luz, por isso subo as escadas comcuidado, acendo o isqueiro e vejo restos de seringasespalhadas. Rosário está na casa de banho a cortar ocabelo, ouve-se uma música flamenca, a voz de Camaronda ilha.- Há café... grita-me ela vou para a cama. estás bem! sim e tuFiz dinheiro para a dose e para os cigarros. Amanhã é dia de pagar a renda. Eu sei, antes de sair deixo a minha parte debaixoda porta do quarto. Está bem, até amanha.Rosário costuma ir ao domingo ao cemitério, diz queai pode tomar chá com a alma da sua avó. Rosário, as almas não bebem chá. Se cheiram incenso porque não podem beber chá Não se pode fazer nada com os mortos. Só morre aquilo de que não se gosta... E que coisas morreram para ti sei lá eu! bem vamos abrir uma garrafa. vamos beber o sangue das nossas vidas. á saúde á saúde.Rosário, por causa da sua doença se encontrar nasúltimas teve de ser internada.Eu mudei de casa, uma assistente social arranjou-meum trabalho de recepcionista na santacasa da misericórdia. Agora moro numa casa comquintal, moro eu e o meu gato. Ontem recebi uma cartada minha mãe. Como pensa que eu trabalho no teatro,pede que lhe envie entradas para ir ver a revista,eu escrevo que vou viajar, que vou em tournée, masprometo-lhe que quando regressar lhe ofereço asentradas. Ofereço-lhe também um estojo de beleza.Na última carta contava-me que o meu pai lhe batia,não conseguia parar de beber.O pai de rosário também batia na mãe e, quando estaera pequena, por diversas vezes a tinha violado. Fazuma semana que ela morreu. Agora imagino que está abeber chá com a alma da sua avó. Ontem, enquantoescutava a música do amolador vinha-me ao pensamentomaria puta de Lisboa.doc que a morte tem a música da chuva. Pensar isto nãoaquece o coração, se ela agora aqui estivessetentaríamos recomeçar. Ou talvez seja uma desculpapara se fugir quilo que tinha de ser vivido.Rosário tu nunca amaste ninguém, mas também nuncafoste amada por ninguém ou não houve tempo para quedescobrisses as coisas que demoram tempo. Pensoter-te conhecido bem, mas, não estive na tua pele,as nossa dores são coisas muito nossas e não existemmedidores capazes. Podia escrever-te uma carta, masnão há o correio das almas. Tenho o gato sobre o meucolo, limpo uma pequena lágrima ao seu pêlo e ficoquieta, como se eu fosse ele e o mundo tivesse parado.A nossa vida é um muro branco que apetece sujar ousimplesmente tornar o seu aspecto uma coisa maisautêntica do que era antes; podemos imaginar um homemde fato branco, um tipo como o senhor Januário que estápodre e parece casto nas finas maneiras de se insinuarno primeiro encontro, ele está filiado num partido dedireita, tudo o que foi construído ilegal, toda a suariqueza pessoal se fez na angariação de mulheres e notráfico de droga.Agora veio a lume o seu envolvimento no lado escuro dofutebol. O senhor Januário terá sempre a protecção dosseus padrinhos, a família politica não o vai deixar cairem desgraça. Ninguém está limpo. Eu tento recomeçar,não é sempre por motivos pesados que vamos parar aquiloque outros adjectivam de pior. O pior pode ser a moral,a religião, o pior pode ser não se conhecer o lado escuroe levar-se com luz demasiado forte nos olhos. Agora melembrei que são poucos ou nenhuns os retratos de infância,parece que o vento leva a infância como leva os papéis dochão, parece que leva as roupas do corpo, o gato pareceque me percebe. Ele é o meu homem, o meu amor verdadeiro,imagino que espalha a cinza da lareira sobre os meuscabelos, parece um ritual ortodoxo, finjo que sou aMadalena apedrejada nos prédios e nos centros comerciaise que ele é um Cristo ágil, se escapando para os telhados,perdoando aos homens que caem na tentação de representaremdemasiado bem o amor. O meu trabalho decorre normal, costumoencontrar por perto o velho poeta, costumamos conversar umpouco, as nossas conversas são o assunto dele que é a poesia.Fala-me do Luís Pacheco que é um poeta surrealista que andaa comer dos caixotes do lixo e que é o poeta mais puta deLisboa, ele e o cesariny são todos a melhor puta de poesia.Conto-lhe que ás vezes escreve, o meu sonho era o teatroe ele elogia-me a voz, que tenho uma garganta de água tãocristalina como a garganta do sol. Eu desato a rir e beboo meu café. Olho a rua e lembro-me que tenho de passar pelamercearia da Rosa e comprar comida para o gato.O velho poeta olha-me e toca-me as mãos e parece queacrescenta vida, vida verdadeira aos anos que julgava terperdido, tenho umas rugas mas sinto-me bonita, quandorecordo certas passagens penso que foi um comboio rápidoque passou e a memória parece uma árvore que caminha edepois desaparece. Não sei se tu acreditas no amor, épreciso não recusar a entrada do sol. A minha mãe parecea figura em forma de escuridão. Não é capaz de uma lágrima,não sabe fazer um sorriso verdadeiro, podia convidá-la apassar aqui uns dias, mas estar com ela ainda vai representarmuita tralha de vida que não gostaria de voltar a confrontar,não queria velhos ódios. Quando me resolver, vou visitá-la ouenvio-lhe dinheiro. Seja como for, não queria insistir natentativa de me sentar á mesa fingindo a Madalena bem comportadada sagrada família. A ideia de ter contas a ajustar foi há muito.O amor não se fabrica, isto não o posso dizer á minha mãe, pareceque estar aqui, ter família, enfim faça-se o que se fizertenha-se o que se tiver é da nossa responsabilidade. Podiadizer que cada um tem de pagar as suas contas, mas a indiferençaé uma conta elevada, fingir que os outros não existem, que asnossas questões são só nossas torna mais agudas as nossas dores,vou tentar não magoar a minha mãe, tentar não representardemasiado bem. Vou preparar uma comida rápida e vou sair ondehá uma feira do livro, vou caminhar um pouco a pé. Outro diapassei por um padre, depois ele entrou no elevador e eu dissepara mim que era só carregar no botão e estava no céu, ele tinhaum ar bastante conservador, se calhar pensa que os elevadoressão obra do diabo. Eu estava com vontade de me despir á frentedele, de o provocar. A tentação também está num elevador, opadre parece que tem trinta anos, é magro de cara, uma carade palerma, se eu fosse o Cristo havia de cair da cruz de tantorir. Agora vou arrumar um pouco a casa, é mais difícil arrumara vida, fiz um arranha-céu de loiça, tantos os dias que fiqueisem vontade de arrumar ou lavar, a vantagem de viver sozinha oua desvantagem.Quero contar-vos que o poeta me tem feito propostas de casamento,não de um modo directo mas dá a entender. Eu já tive muitoshomens e ás vezes não sei se há muita diferença entre ser-seputa ou ser-se doméstica, parece que somos todos grandes putas.Até tu digo eu ao meu gato. Se eu escrevesse um livro, podiaser sobre a prostituição no reino animal. Vou, pois, arrumar acasa. Depois ponho-me a dormir, o gato costuma adormecer comigo,imagino ele a ter os meus sonhos e eu os dele... eu a ter ossonhos dele vou andar a cheirar a peixe e ele vai cheirar a puta,um gato a cheirar a puta.Ainda estou a pensar no velho poeta, vou encontrar-me comele e se ele falar, embora disfarçadamente, em casamento vaificar a saber que sofro de uma doença incurável que faz oshomens infelizes. Ainda tenho uma alma de puta, não é pelodinheiro dos homens, é pelos segredos deles. Na camaapanham-se muitos segredos de estado. O casamento é uma regrae eu quero dar-me selvagem, perceber a mentira e a ilusão doshomens. Sei que exagero em relação ao homens, sei que, quandonós mulheres nos demoramos com eles, quando permitimos quesaia de dentro deles aquele orgulho de nos conquistarem comoquem conquista o mundo, acho que as mulheres são conquistadaspela solidão deles. Lembro-me de um cliente meu que pagavapara falar da mulher e dos seus dois filhos, dizia que amavatanto a mulher que não a conseguia tocar, fizera com ela amorapenas duas vezes, depois pagava pela conversa e pelo sexo.Outro dia vi-o de longe, estava com a mulher e os filhos, ascrianças eram bonitas, penso que eram felizes, naquele diafazia muito sol, ouvi-as gritar e parece que aquela vida semisturava no brilho do sol, era o sol a gritar com a vida, apedir mais uns sorrisos, mais uma réstia de vontade. Olho áminha volta, parece que o rio afunda o passado, parece queme apetece uma sinfonia e uma profunda tristeza é o viciodos dias. Faz meses que a Rosário morreu, de seu verdadeironome Alberto, ainda tenho na minha mala de mão, além doverniz e do batom, uma fotografia dela. Sei que quando amesma foi tirada tinha 14 anos, está vestido com uma saiaescocesa e parece que tem na expressão dos olhos vontade dedançar; quando era criança andou a aprender ballet com umaprofessora russa, como a família não tinha muitos recursos,uma senhora pagava-lhe as aulas, passados uns dias asenhora foi atropelada e o ballet ficou esmagado nas rodasde um carro. Quero eu dizer, atropelou-se uma grandeoportunidade ou quem sabe a sua vida não seria o que tinhade ser.Rosário tu eras uma pobre e já te imagino a dançares empontas com o desequilíbrio do mundo. Agora, raras vezesencontro o velho poeta, ás vezes está sentado nas escadasda Basílica da Estrela, anda sempre com um caderno, játentei ler a sua letra, parece caligrafia de médico,disse-me que esteve para estudar medicina, pensou ser médicodos olhos, confidenciou-me que gosta de olhos azuis, quegostava de ser o médico do mar e de tratar os olhos azuis domar quando lhe aparecesse a doença da tempestade. Eu fico aolhá-lo, parece que os poetas são pessoas difíceis, aspalavras não são simples como as raízes que ficam na terrae dão sem explicação flores á disposição dos nossos olhos.Despeço-me dele e apanho o eléctrico, vou descendo a rua ereparo no fumo que sai de uma chaminé, parece a fábrica dasnuvens, se calhar vai chover, depois fecho os olhos eadormeço um instante.A cidade move-se em mim, tão íntima e indiferente, como aspalavras fora dos livros e das pessoas. O poeta acena-me.O acenar das suas mãos ondulam como asas e eu dou umagargalhada e o mundo interior ri. E desato a chorar. Eracomo se tudo aquilo que tentasse reconstruir desabasse,acho que não quero reconstruir coisa nenhuma, acho quenão quero voltar ao começo, sempre que me apaixono, sempreque penso em alguém, sempre que fecho os olhos vejo maisnítido dentro de mim e, ao mesmo tempo, não percebo nada.Escrevo-te esta carta, na verdade ainda é um rascunho, ocesto dos papéis tem outras, parece que são bocados devidas rasgadas, rasgadas mas não apagadas, a memória éuma doença que não se cura. Ontem lembrei-me daquelatarde de Maio em que tentei o suicídio, lembro-me deouvir a Rosário contar que me fez beber azeite e quedepois até parecia que tinha vomitado a criação, devoter expulsado muitos demónios. O velho poeta quando lhecontei esta passagem da minha vida diz que a morte fazsubir a febre á vida, eu penso que morrer é uma fuga,pelo menos aquela encenada pela nossa vontade. Sei quenão tenho respostas, sei que do outro lado não existemsegredos desvendados.Filosofias á parte, é dentro de ti e de mim para o male para o bem. Eu Maria, nascida em Bragança, te dedicoestas palavras e um dia se nos encontrarmos, vamoslembrar ou vamos esquecer ou, fazer o que for melhorpara que o chão não nos puxe os pés.·Lobo 05
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